A nova reforma Protestante
Inspirado no cristianismo primitivo e
conectado à internet, um grupo crescente de religiosos critica a corrupção
neopentecostal e tenta recriar o protestantismo à brasileira
RICARDO ALEXANDRE
EM CONSTRUÇÃO
Ilustração de um monumento em forma
de cruz
Irani Rosique não é apóstolo, bispo, presbítero nem pastor. É apenas um
cirurgião geral de 49 anos em Ariquemes, cidade de 80 mil habitantes do
interior de Rondônia. No alpendre da casa de uma amiga professora, ele se
prepara para falar. Cercado por conhecidos, vizinhos e parentes da anfitriã,
por 15 minutos Rosique conversa sobre o salmo primeiro (“Bem-aventurado o homem
que não anda segundo o conselho dos ímpios”). Depois, o grupo de umas 15
pessoas ora pela última vez – como já havia orado e cantado por cerca de meia
hora antes – e então parte para o tradicional chá com bolachas, regado a
conversa animada e íntima.
Desde que se converteu ao cristianismo evangélico, durante uma aula de
inglês em Goiânia em 1969, Rosique pratica sua fé assim, em pequenos grupos de
oração, comunhão e estudo da Bíblia. Com o passar do
tempo, esses grupos cresceram e se multiplicaram. Hoje, são 262 espalhados por
Ariquemes, reunindo cerca de 2.500 pessoas, organizadas por 11 “supervisores”,
Rosique entre eles. São professores, médicos, enfermeiros, pecuaristas,
nutricionistas, com uma única característica comum: são crentes mais
experientes.
Apesar de jamais ter participado de uma igreja nos moldes tradicionais,
Rosique é hoje uma referência entre líderes religiosos de todo o Brasil, mesmo
os mais tradicionais. Recebe convites para falar sobre sua visão descomplicada
de comunidade cristã, vindos de igrejas que há 20 anos não lhe responderiam um
telefonema. Ele pode ser visto como um “símbolo” do período de transição que a
igreja evangélica brasileira atravessa. Um tempo em que ritos, doutrinas,
tradições, dogmas, jargões e hierarquias estão sob profundo processo de
revisão, apontando para uma relação com o Divino muito diferente daquela
divulgada nos horários pagos da TV.
Estima-se que haja cerca de 46 milhões de evangélicos no Brasil. Seu
crescimento foi seis vezes maior do que a população total desde 1960, quando
havia menos de 3 milhões de fiéis espalhados principalmente entre as igrejas
conhecidas como históricas (batistas, luteranos, presbiterianos e metodistas).
Na década de 1960, a hegemonia passou para as mãos dos pentecostais, que davam
ênfase em curas e milagres nos cultos de igrejas como Assembleia de Deus,
Congregação Cristã no Brasil e O Brasil Para Cristo. A grande explosão numérica
evangélica deu-se na década de 1980, com o surgimento das denominações
neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Renascer. Elas
tiraram do pentecostalismo a rigidez de costumes e a ele adicionaram a
“teologia da prosperidade” (leia o quadro na última pág.). Há quem aposte
que até 2020 metade dos brasileiros professará à fé evangélica.
Dentro do próprio meio, levantam-se vozes críticas a esse crescimento.
Segundo elas, esse modelo de igreja, que prospera em meio a acusações de evasão
de divisas, tráfico de armas e formação de quadrilha, tem sido mais
influenciado pela sociedade de consumo que pelos ensinamentos da Bíblia. “O movimento evangélico está visceralmente em colapso”, afirma o
pastor Ricardo Gondim, da igreja Betesda, autor de livros como Eu creio, mas tenho dúvidas: a graça de Deus e nossas frágeis
certezas (Editora Ultimato). “Estamos vivendo um momento de mudança de
paradigmas. Ainda não temos as respostas, mas as inquietações estão postas, talvez
para ser respondidas somente no futuro.”
SÍMBOLO
O cirurgião Irani Rosique (sentado, de camisa branca, com a Bíblia aberta no colo). Sem cargo de
clérigo, ele mobiliza 2.500 pessoas no interior de Rondônia
Nos Estados Unidos, a reinvenção da igreja evangélica está em curso há
tempos. A igreja Willow Creek de Chicago trabalhava sob o mote de ser “uma
igreja para quem não gosta de igreja” desde o início dos anos 1970. Em São
Paulo, 20 anos depois, o pastor Ed René Kivitz adotou o lema para sua Igreja
Batista, no bairro da Água Branca – e a ele adicionou o complemento “e uma
igreja para pessoas de quem a igreja não costuma gostar”. Kivitz é atualmente
um dos mais discutidos pensadores do movimento protestante no Brasil e um dos
principais críticos da“religiosidade institucionalizada”. Durante seu
pronunciamento num evento para líderes religiosos no final de 2009, Kivitz
afirmou: “Esta igreja que está na mídia está morrendo pela boca, então que
morra. Meu compromisso é com a multidão agonizante, e não com esta igreja
evangélica brasileira.”
Essa espécie de “nova reforma protestante” não é um movimento coordenado
ou orquestrado por alguma liderança central. Ela é resultado de manifestações
espontâneas, que mantêm a diversidade entre as várias diferenças teológicas,
culturais e denominacionais de seus ideólogos. Mas alguns pontos são comuns. O
maior deles é a busca pelo papel reservado à religião cristã no mundo atual. Um
desafio não muito diferente do que se impõe a bancos, escolas, sistemas
políticos e todas as instituições que vieram da modernidade com a credibilidade
arranhada. “As instituições estão todas sub judice”, diz o teólogo
Ricardo Quadros Gouveia, professor da Universidade Mackenzie de São Paulo e
pastor da Igreja Presbiteriana do Bairro do Limão. “Ninguém tem dúvida de que
espiritualidade é uma coisa boa ou que educação é uma coisa boa, mas as
instituições que as representam estão sob suspeita.”
Uma das saídas propostas por esses pensadores é despir tanto quanto
possível os ensinamentos cristãos de todo aparato institucional. Segundo eles,
a igreja protestante (ao menos sua face mais espalhafatosa e conhecida) chegou
ao novo milênio tão encharcada de dogmas, tradicionalismos, corrupção e
misticismo quanto a Igreja Católica que Martinho Lutero tentou reformar no
século XVI. “Acabamos nos perdendo no linguajar ‘evangeliquês’, no moralismo,
no formalismo, e deixamos de oferecer respostas para nossa sociedade”, afirma o
pastor Miguel Uchôa, da Paróquia Anglicana Espírito Santo, em Jaboatão dos
Guararapes, Grande Recife. “É difícil para qualquer pessoa esclarecida conviver
com tanto formalismo e tão pouco conteúdo.”
“É lisonjeador
saber que nos consideram ‘pensadores’. Mas o grande problema dos evangélicos
brasileiros não é de inteligência. É de ética e honestidade”
RICARDO AGRESTE, pastor da
Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera, em Campinas, São Paulo
Uchôa lidera a maior comunidade anglicana da América Latina. Seu
trabalho é reconhecido por toda a cúpula da denominação como um dos mais
dinâmicos do país. Ele é um dos grandes entusiastas do movimento inglês Fresh
Expressions, cujo mote é “uma igreja mutante para um mundo mutante”. Seu
trabalho é orientar grupos cristãos que se reúnem em cafés, museus, praias ou
pistas de skate. De maneira genérica, esses grupos são chamados de “igreja
emergente” desde o final da década de 1990. “O importante não é a forma”,
afirma Uchôa. “É buscar a essência da espiritualidade cristã, que acabou
diluída ao longo dos anos, porque as formas e hierarquias passaram a ser usadas
para manipular pessoas. É contra isso que estamos nos levantando.”
No meio dessa busca pela essência da fé cristã, muitas das práticas e
discursos que eram característica dos evangélicos começaram a ser considerados
dispensáveis. Às vezes, até condenáveis (leia o quadro na
última pág.). Em Campinas, no interior de São Paulo, ocorre uma das experiências
mais interessantes de recriação de estruturas entre as denominações históricas.
A Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera não tem um templo. Seus
frequentadores se reúnem em dois salões anexos a grandes condomínios da cidade
e em casas ao longo da semana. Aboliram a entrega de dízimos e as ofertas da
liturgia. Os interessados em contribuir devem procurar a secretaria e fazê-lo
por depósito bancário – e esperar em casa um relatório de gastos. Os sermões
são chamados, apropriadamente, de “palestras” e são ministrados com recursos
multimídias por um palestrante sentado em um banquinho atrás de um MacBook. A
meditação bíblica dominical é comumente ilustrada por uma crônica de Luis
Fernando Verissimo ou uma música de Chico Buarque de Hollanda.
“As pessoas não
querem mais dogmas, elas querem autenticidade. Minha postura é, juntos,
buscarmos algumas respostas satisfatórias a nossas inquietações”
ED RENÉ KIVITZ, pastor da Igreja
Batista da Água Branca, em São Paulo
“Os seminários teológicos formam ministros para um Brasil rural em que
os trabalhos são de carteira assinada, as famílias são papai, mamãe, filhinhos
e os pastores são pessoas respeitadas”, diz Ricardo Agreste, pastor da
Comunidade e autor dos livros Igreja? Tô fora e A jornada (ambos lançados pela Editora Socep).
“O risco disso é passar a vida oferecendo respostas a perguntas que ninguém
mais nos faz. Há muita gente séria, claro, dizendo verdades bíblicas, mas
presas a um formato ultrapassado.”
Outro ponto em comum entre esses questionadores é o rompimento declarado
com a face mais visível dos protestantes brasileiros: os neopentecostais. “É
lisonjeador saber que atraímos gente com formação universitária e que nos
consideram ‘pensadores’”, afirma Ricardo Agreste. “O grande problema dos
evangélicos brasileiros não é de inteligência, é de ética e honestidade.”
Segundo ele, a velha discussão doutrinária foi substituída por outra. “Não é
mais uma questão de pensar de formas diferentes a espiritualidade cristã”, diz.
“Trata-se de entender que há gente usando vocabulário e elementos de prática
cristã para ganhar dinheiro e manipular pessoas.”
Esse rompimento da cordialidade entre os evangélicos históricos e os
neopentecostais veio a público na forma de livros e artigos. A jornalista
(evangélica) Marília Camargo César publicou no final de 2008 o livro Feridos em nome de Deus(Editora Mundo Cristão), sobre fiéis
decepcionados com a religião por causa de abusos de pastores. O teólogo
Augustus Nicodemus Lopes, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
publicou O que estão fazendo com a
Igreja: ascensão e queda do movimento evangélico brasileiro (Mundo Cristão),
retrato desolador de uma geração cindida entre o liberalismo teológico, os
truques de marketing, o culto à personalidade e o esquerdismo político. Em um
recente artigo, o presidente do Centro Apologético Cristão de Pesquisas, João
Flavio Martinez, definiu como “macumba para evangélico” as práticas místicas da
Igreja Universal do Reino de Deus, como banho de descarrego e sabonete com
extrato de arruda.
Tais críticas, até pouco tempo atrás, ficavam restritas aos bastidores
teológicos e às discussões internas nas igrejas. Livros mais antigos – como Supercrentes, Evangélicos em crise, Como ser cristão sem ser
religioso e O evangelho maltrapilho (todos da editora Mundo Cristão) –
eram experiências isoladas, às vezes recebidos pelos fiéis como desagregadores.
“Parece que a sociedade se fartou de tanto escândalo e passou a dar ouvidos a
quem já levantava essas questões há tempos”, diz Mark Carpenter, diretor-geral
da Mundo Cristão.
O pastor Kivitz – que publicou pela Mundo Cristão seus livros Outra espiritualidade e O livro
mais mal-humorado da Bíblia– distingue essa crítica interna daquela feita pela
mídia tradicional aos neopentecostais “A mídia trata os evangélicos como um
fenômeno social e cultural. Para fazer uma crítica assim, basta ter um pouco de
bom-senso. Essa crítica o (programa) CQC já faz, porque essa igreja é mesmo um escracho”,
diz ele. “Eu faço uma crítica diferente, visceral, passional, porque eu sou evangélico. E não sou isso que está na televisão,
nas páginas policiais dos jornais. A gente fica sem dormir, a gente sofre e
chora esse fenômeno religioso que pretende ser rotulado de cristianismo.”
A necessidade de se distinguir dos neopentecostais também levou essas
igrejas a reconsiderar uma série de práticas e até seu vocabulário. Pastores e
“leigos” passam a ocupar o mesmo nível hierárquico, e não há espaço para
“ungidos” em especial. Grandes e imponentes catedrais e “cultos shows” dão
lugar a reuniões informais, em pequenos grupos, nas casas, onde os líderes
podem ser questionados, e as relações são mais próximas. O vocabulário herdado da
teologia triunfalista do Antigo Testamento (vitória, vingança, peleja, guerra,
maldição) é reconsiderado. Para superar o desgaste dos termos, algumas igrejas
preferem ser chamadas de “comunidades”, os cultos são anunciados como
“reuniões” ou “celebrações” e até a palavra “evangélico” tem sido preterida em
favor de “cristão” – o termo mais radical. Nem todo mundo concorda,
evidentemente. “Eles (os neopentecostais) é que não
deveriam ser chamados de evangélicos”, afirma o bispo anglicano Robinson
Cavalcanti, da Diocese do Recife. “Eles é que não têm laços históricos,
teológicos ou éticos com os evangélicos.”
Um dos maiores estudiosos do fenômeno evangélico no Brasil, o sociólogo
Ricardo Mariano (PUC-RS), vê como natural o embate entre neopentecostais e as
lideranças de igrejas históricas. Ele lembra que, desde o final da década de
1980, quando o neopentecostalismo ganhou força no Brasil, os líderes das
igrejas históricas se levantaram para desqualificar o movimento. “O problema é
que não há nenhum órgão que regule ou fale em nome de todos os evangélicos,
então ninguém tem autoridade para dizer o que é uma legítima igreja
evangélica”, afirma.
“O que importa é
buscar a essência do cristianismo, que acabou diluída porque as formas e
hierarquias passaram a ser usadas para manipular pessoas”
MIGUEL UCHÔA, pastor anglicano
(à esquerda na foto, ao lado do bispo Robinson Cavalcanti, da Diocese do
Recife)
Procurado por ÉPOCA, Geraldo Tenuta, o Bispo Gê, presidente nacional da
Igreja Renascer em Cristo, preferiu não entrar em discussões. “Jesus nos
ensinou a não irmos contra aqueles que pregam o evangelho, a despeito de suas
atitudes”, diz ele. “Desde o início, éramos acusados disto ou daquilo, primeiro
porque admitíamos rock no altar, depois porque não tínhamos usos e costumes.
Isso não nos preocupa. O que não é de Deus vai desaparecer, e não será por obra
dos julgamentos.” A Igreja Universal do Reino de Deus – que, na terceira semana
de julho, anunciou a construção de uma “réplica do Templo de Salomão” em São
Paulo, com “pedras trazidas de Israel” e “maior do que a Catedral da Sé” –
também foi procurada por ÉPOCA para comentar os movimentos emergentes e as
críticas dirigidas à igreja. Por meio de sua assessoria, o bispo Edir Macedo
enviou um e-mail com as palavras: “Sem resposta”.
O sociólogo Ricardo Mariano, autor do livroNeopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Editora Loyola), oferece uma explicação pragmática para a ruptura
proposta pelo novo discurso evangélico. Ateu, ele afirma que o objetivo é a
busca por uma certa elite intelectual, um público mais bem informado,
universitário, mais culto que os telespectadores que enchem as igrejas
populares. “Vivemos uma época em que o paciente pesquisa na internet antes de
ir ao consultório e é capaz de discutir com o médico, questionar o professor”,
diz. “Num ambiente assim, não tem como o pastor proibir nada. Ele joga para a
consciência do fiel.”
A maior parte da movimentação crítica no meio evangélico acontece nas
grandes cidades. O próprio pastor Kivitz afirma que “talvez não agisse da mesma
forma se estivesse servindo alguma comunidade em um rincão do interior” e que o
diálogo livre entre púlpito e auditório passa, necessariamente, por uma
identificação cultural. “As pessoas não querem dogmas, elas querem
honestidade”, diz ele. “As dúvidas delas são as minhas dúvidas. Minha postura
é, juntos, buscarmos respostas satisfatórias a nossas inquietações.”
Por isso mesmo, Ricardo Mariano não vê comparação entre o apelo das
novas igrejas protestantes e das neopentecostais. “O destino desses líderes
será ‘pescar no aquário’, atraindo insatisfeitos vindos de outras igrejas, ou
continuar falando para meia dúzia de pessoas”, diz ele. De acordo com o
presbiteriano Ricardo Gouveia, “não há, ou não deveria haver, preocupação
mercadológica” entre as igrejas históricas. “Não se trata de um produto a
oferecer, que precise ocupar espaço no mercado”, diz ele. “Nossa preocupação é
simplesmente anunciar o evangelho, e não tentar ‘melhorá-lo’ ou torná-lo mais
interessante ou vendável.”
O advento da internet foi fundamental para pastores, seminaristas,
músicos, líderes religiosos e leigos decidirem criar seus próprios sites,
portais, comunidades e blogs. Um vídeo transmitido pela Igreja Universal em
Portugal divulgando oContrato da fé – um “documento”, “autenticado” pelos pastores, prometendo ao fiel a
possibilidade de se “associar com Deus e ter de Deus os benefícios” –
propagou-se pela rede, angariando toda sorte de comentários. Outro vídeo, em
que o pregador americano Moris Cerullo, no programa do pastor Silas Malafaia,
prometia uma “unção financeira dos últimos dias” em troca de quem “semear” um
“compromisso” de R$ 900 também bombou na rede. Uma cópia da sentença do juiz
federal Fausto De Sanctis (leia a
entrevista com ele) condenando os líderes da Renascer Estevam e
Sônia Hernandes por evasão de divisas circulou no final de 2009. De Sanctis
afirmava que o casal “não se lastreia na preservação de valores de ética ou
correção, apesar de professarem o evangelho”. “Vergonha alheia em doses quase
insuportáveis” foi o comentário mais ameno entre os internautas.
Sites como Pavablog, Veshame Gospel, Irmãos.com, Púlpito Cristão,
Caiofabio.net ou Cristianismo Criativo fazem circular vídeos, palestras e
sermões e debatem doutrinas e notícias com alto nível de ousadia e autocrítica.
De um grupo de blogueiros paulistanos, surgiu a ideia da Marcha pela ética, um
protesto que ocorre há dois anos dentro da Marcha para Jesus (evento organizado
pela Renascer). Vestidos de preto, jovens carregam faixas com textos bíblicos e
frases como “O $how tem que parar” e “Jesus não está aqui, ele está nas
favelas”.
“O homem sem Deus
joga papel no chão? O cristão não deve jogar. É a proposta de Jesus,
materializar o amor ao próximo no dia a dia”
VALTER RAVARA, “ecocapelão”,
criador do Instituto Gênesis 1.28 e da Bíblia verde
A maior parte desses blogueiros trafega entre assuntos tão diversos como
teologia, política, televisão, cinema e música popular. O trânsito entre o
“secular” e o “sagrado” é uma das características mais fortes desses novos
evangélicos. “A espiritualidade cristã sempre teve a missão de resgatar a
pessoa e fazê-la interagir e transformar a sociedade”, diz Ricardo Agreste.
“Rompemos o ostracismo da igreja histórica tradicional, entramos em diálogo com
a cultura e com os ícones e pensamento dessa cultura e estamos refletindo sobre
tudo isso.”
Em São Paulo, o capelão Valter Ravara criou o Instituto Gênesis 1.28, uma
organização que ministra cursos de conscientização ambiental em igrejas,
escolas e centros comunitários. “É a proposta de Jesus, materializar o amor ao
próximo no dia a dia”, afirma Ravara. “O homem sem Deus joga papel no chão? O
cristão não deve jogar.” Ravara publicou em 2008 a Bíblia verde, com laminação biodegradável, papel de
reflorestamento e encarte com textos sobre sustentabilidade.
A então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, escreveu o prefácio da Bíblia verde. Sua candidatura à Presidência da República
angariou simpatia de blogueiros e tuiteiros, mas não o apoio formal da
Assembleia de Deus, denominação a que ela pertence. A separação entre política
e religião pregada por Marina é vista como um marco da nova inserção social
evangélica. O vereador paulistano e evangélico Carlos Bezerra Jr. afirma que o
dever do político cristão é “expressar o Reino de Deus” dentro da política. “É
o oposto do que fazem as bancadas evangélicas no Congresso, que existem para
conseguir facilidades para sua denominação e sustentar impérios eclesiásticos”,
diz ele.
DA WEB ÀS RUAS
Blogueiros que organizam a Marcha
pela ética, um movimento de protesto incrustado dentro da Marcha para Jesus,
promovida pela Renascer
O raciocínio antissectário se espalhou para a música. Nomes como
Palavrantiga, Crombie, Tanlan, Eduardo Mano, Helvio Sodré e Lucas Souza se
definem apenas como “música feita por cristãos”, não mais como “gospel”. Eles
rompem os limites entre os mercados evangélico e pop. O antissectarismo torna
os evangélicos mais sensíveis a ações sociais, das parcerias com ONGs até uma
comunidade funcionando em plena Cracolândia, no centro de São Paulo. “No fundo,
nossa proposta é a mesma dos reformadores”, diz o presbiteriano Ricardo
Gouveia. “É perceber o cristianismo como algo feito para viver na vida
cotidiana, no nosso trabalho, na nossa cidadania, no nosso comportamento ético,
e não dentro das quatro paredes de um templo.”
A teologia chama de “cristocêntrico” o movimento empreendido por esses
crentes que tentam tirar o cristianismo das mãos da estrutura da igreja – visão
conhecida como “eclesiocêntrica” – e devolvê-lo para a imaterialidade das
coisas do espírito. É uma versão brasileiramente mais modesta do que a Igreja
Católica viveu nos tempos da Reforma Protestante. Desta vez, porém, dirigida
para a própria igreja protestante. Depois de tantos desvios, vozes internas
levantaram-se para propor uma nova forma de enxergar o mundo. E, como efeito,
de ser enxergadas por ele. Nas palavras do pastor Kivitz: “Marx e Freud nos
convenceram de que, se alguém tem fé, só pode ser um estúpido infantil que
espera que um Papai do Céu possa lhe suprir as carências. Mas hoje gostaríamos
de dizer que o cristianismo tem, sim, espaço para contribuir com a construção
de uma alternativa para a civilização que está aí. Uma sociedade que todo mundo
espera, não apenas aqueles que buscam uma experiência religiosa”.